sábado, julho 13, 2019

Os "descritores" do racismo

Nota prévia: este texto é a continuação directa do que eu escrevi e publiquei ontem (Espelho meu, espelho meu, que racistas pensas que sou eu?), pelo que será, na minha opinião, melhor entendido se for lido depois desse outro.

Mesmo que não conhecesse ainda a afirmação do Professor Adriano Moreira, que diz que um licenciado é alguém que tem licença para estudar sozinho, era já assim que eu tentava fazer.


A 'Roche' tinha naquela altura (anos 80 do século XX) uma série de livrinhos sobre psicofarmacologia, psicossomática e psiquiatria, a que eu tive acesso, nem sei como, e que muito gostei de ler.

Num deles, talvez no de Psiquiatria (não tenho o livro agora comigo, aqui em casa; está no armazém onde tenho os livros que já não cabem cá), encontrei uma secção que li com especial gosto, interesse e humor. Era a secção que falava da necessidade reconhecida em muitos médicos de fazerem o treino (hoje em dia diríamos: “frequentarem o workshop”), ou a habituação ao vocabulário grosseiro, do calão, das asneiras, quer dizer, de tudo o que estivesse ligado à anatomia sexual, às relações sexuais e às doenças sexuais. No fundo, por razões culturais e de educação, um grande número de médicos (e médicas...) não se sentia à vontade no uso de termos, tais como (e dou apenas 2 ou 3 exemplos, de alguns mais “mansos”) pila, picha, comer uma gaja, etc.

E nem eram apenas os pruridos ligados aos rigores e censuras morais da cultura dominante, eram também questões ligadas à riqueza da expressão vocabular da língua. Por exemplo, um dia, numa consulta numa escola de ensino especial, a mãe de um jovem rapazinho queixava-se que o filho tinha um problema com o São Lázaro... e São Lázaro para aqui, São Lázaro para ali, e eu já a arquitectar, entre outras coisas, uma fantasia delirante do rapaz, reactiva a uma imposta e muito severa educação religiosa... Mas não dava a bota com a perdigota... Até que finalmente percebi que o São Lázaro era a pilinha do menino. A senhora é que estava com vergonha de dizer pilinha - e nem sei se conheceria o educado pénis.

É isso, lembro-me muito bem quanto me diverti a imaginar tais “workshops” de desinibição moral e verbal; e cheguei até a participar em alguns, ad hoc, ou melhor, à balda, que fiz com alguns colegas (sim, de ambos os sexos).

E que tem tudo isto a ver com o racismo e os descritores do racismo?

É que a carga moral, a pressão política e sociológica, sobretudo de certos grupos de pressão, social e política, é tão grande que há palavras e frases que se tornaram malditas, autênticos tabus, mais inomináveis que o Inominável do Senhor dos Anéis. Mais: não só não podem ser ditas como nem sequer podem ser pensadas, em consequência dos processos de auto-culpabilização gerados pela assimilação passiva da quase-católica apostólica romana máxima, ou sentença, de que todos somos pecadores, perdão!, racistas. Pensar essas coisas é provar-se racista - atitude absolutamente condenável! Nem ao espelho assim me atrevo a olhar, quanto mais olhar as outras pessoas.

O que eu quero dizer é que temos de ser capazes de tirar a carga emocional e moralmente repressora excessiva que os ventos dos tempos lobbianos que correm põem em cima de coisas que temos toda a legitimidade para pensar e sentir sem sermos logo invadidos pelos sentimentos de culpabilidade que tanto matraquear sócio-político provocou (e continua a fazê-lo) na generalidade das pessoas.

Expressá-los é, então, afinal, enumerar os tais descritores. Alguns exemplos:
  1. Já alguma vez pensei que um preto cheira mal e que o seu cheiro me incomoda? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um branco? Sim, quantas vezes!
  2. Já alguma vez pensei que aquele preto é um calão do caraças que quer ter tudo sem fazer nada? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um branco? Ui, quantas vezes!
  3. Já alguma vez tive medo de um cigano e tive medo que ele me quisesse aldrabar ou roubar? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um branco, ou em relação a um preto? Sim, também; sobretudo brancos.
  4. Já alguma vez pensei que aquele aluno, preto, é bestialmente arrogante e mal-educado? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um aluno branco? Ui, quantas vezes!
  5. Já alguma vez senti vontade de mandar um preto para a sua terra? Não, nunca. E já alguma vez senti isso em relação a um branco? Sim, uma vez desejei, durante dois ou três anos seguidos, que um aluno branco não voltasse a matricular-se na escola no ano a seguir; e ele voltou sempre - que orgulho eu guardei da minha escola!, que sempre se mostrou disponível para o receber e aguentou sempre toda a sua maldade. Muita maldade, sobre as coisas e sobre os outros.

“Desconfio” que muita gente se reconhecerá nos pensamentos, nas vontades e nos sentimentos que expressei a título de exemplos dos “descritores” do racismo. Valem o que valem.

Duas ou três situações mais, apanhadas da minha experiência pessoal e familiar; e sem querer com elas, quais andorinhas, colorir Primaveras.
  • um dia, à mesa, em casa dos avós maternos, a minha sobrinha-neta, pequenita, com idade de início de escolaridade básica (nem sei mesmo se ainda no jardim-de-infância), fez questão de corrigir um dos avós que lhe falou de um dos meninos pretos lá da escola. «Ele não é preto, ele é castanho.»
  • a minha irmã, numa feira, regateava o preço de qualquer coisa que queria comprar. Fazia-o com tal denodo que a vendedeira lhe disse, divertida: «Ó senhora, olhe que a cigana sou eu...» E aquilo foi mesmo um divertimento!
  • esta agora é uma confissão. Já me aconteceu três vezes, com alunos da escola. Um deles ainda é meu aluno. Com os três (dois rapazes e uma rapariga) mantive contacto ao longo de meses - e contacto regular, porque ambos eram alunos de turmas que eu leccionava. Longe de mim a necessidade, ou sequer a consciência perceptiva da cor da pele - deles e dos outros. Até que um dia, colegas se referiram a eles como “pretos” e eles responderam com naturalidade ao chamamento. Em todos os casos reagi com espanto - nunca assim eu os havia identificado: pretos. Há quem diga que só ultrapassamos as barreiras do racismo quando somos capazes de olhar sem ver a cor da pele. Estes casos fizeram sentir-me muito bem comigo mesmo.

Pululam à nossa volta indivíduos e grupos com jeitos de Grandes Irmãos que nos vigiam e querem moldar o nosso pensamento, alguns deles servidos por estruturas formais e politico-partidárias organizadas, e a mãozinha deste ou aquele órgão da comunicação social; e o aconchego de certos interesses económicos. Que nos escrutinem tudo, mas que saibamos preservar a nossa liberdade de pensar. Lembremo-nos de Mandela e do poema, escrito por um jovem, que o inspirou: «Sou o senhor do meu destino / Sou o comandante da minha alma.»

quinta-feira, julho 11, 2019

Espelho meu, espelho meu, que racista pensas que sou eu?


  1. O muito lamentável texto da Professora Bonifácio sobre ciganos, africanos e afro-descendentes
    (sim, nunca disse pretos; e negros só 2 vezes, e, neste caso, para se referir às palavras de outros autores) teve o condão de pôr muita gente a discutir a questão de sermos ou não todos racistas - não interessa se declaradamente ou veladamente.
  2. Para tentar dar um contributo pessoal válido à discussão, procedi rapidamente a uma muito objectivamente focada investigação sociológica e obtive os seguintes resultados: 50% da amostra reconhece-se no grupo A: "Tento não ser..."; e os outros 50% no grupo B: "Eu não sou, mas..." Para estes resultados tão claros, uniformes e consistentes contribuíram, para o grupo A, 1 (um) indivíduo; para o grupo B, 1 (um) indivíduo também. Quer dizer, os resultados e as conclusões são incontestáveis.
  3. Em 2007, depois de subir o Quilimanjaro, desci à Ilha dos Amores, Zanzibar, também na Tanzânia. Na cidade que é Património da Humanidade, Stone Town, a generalidade dos restaurantes e a fantástica praça pública, aberta, onde todos os dias do ano se juntam, na maior diversidade étnica que eu alguma vez vi, livremente, pessoas (famílias, grupos de amigos, turistas, solitários; grupos homogéneos ou heterogéneos) a partir do pôr-do-sol, a comer e a beber, não se vendem bebidas alcoólicas - é que, mesmo que a religião muçulmana não seja a dominante, é muito assertiva e conseguiu impor a proibição das bebidas alcoólicas. Podemos bebê-las, mas temos de nos desenrascar para as comprar onde as houver, mas nos restaurantes e nas barraquitas da praça é que não as há - se quisermos beber vinho ou uma cerveja temos de levar essas bebidas connosco. Podemos bebê-las ali (até nos restaurantes!), mas comprá-las ali não temos hipóteses.
  4. Isto vem a propósito de haver hoje em dia, em Portugal (e não só, mas agora é de Portugal que eu quero falar) questões, assuntos ou temas que são acerrimamente expostos e tratados na Comunicação Social e das arenas políticas por gente muito aguerrida e auto-atribuída de valores e princípios que, no caso de que me ocupo agora (essencialmente, o racismo), está, essa gente, muito bem pensada e analisada no recente artigo de Gabriel Mithá Ribeiro, "A deficiência moral da esquerda branca e activista".
  5. Quer-me parecer (e isto é uma mera opinião, não é, de modo nenhum, o resultado de uma "investigação sociológica" como a que referi no ponto 2), que, nos tempos que correm, e, se calhar, em resultado dos processos em que nos viciámos inconscientemente pelas marcas de cultura que ao longo da vida fomos absorvendo, a "verdade" (que nos querem inculcar à força de muito matraquearem ) de que "todos somos racistas" é o substituto sociológico, cultural ou histórico da evidência cristã, doutros tempos, de outros séculos, de que "todos somos pecadores".
  6. Bem, mesmo um não-crente, se lhe perguntarem se ele é pecador (e como pecar é, basicamente, fazer coisas mal feitas), evidentemente, mesmo que não o diga para fora, ele vai reconhecer-se interiormente como pecador, já que é "estatisticamente", "matematicamente", impossível não pecar. Não nos diz a Voz do Povo que "errar é humano"?
  7. Só que - esperem aí! - pecar é uma coisa; ser racista é outra. Eu sou - sim senhor - pecador (mesmo não sendo crente), mas não sou racista. Pronto, tenho de admitir que, "às escondidas", eu também aceitei dizer "Não sou racista, mas..."
  8. Deixem-me contar outra experiência pessoal, também bem verdadeira (aliás, já a contei algures, por aí): quando eu estava a fazer recruta, já eu era psicólogo, um dos meus recém-camaradas tentava, desde o primeiro dia da nossa guerra, ser dispensado dela. Um dia diz-me: "Consegui que um psiquiatra me passe um atestado de doença mental e já o trago na semana que vem." Tentei demovê-lo disso, tentei, tentei, mas sem sucesso. Quando ele regressou ao quartel na semana seguinte, trazia o tal atestado, mas o semblante dele tornou-se sombrio, cabisbaixo: é que ele tinha lido o atestato (que eu li também, era um documento muito pormenorizado para para que não deixasse de ser convincente), e, ao fazê-lo, constatou que, na verdade, ele tinha muito daquelas coisas, por isso, afinal ele estava mesmo doente; e por isso talvez fosse até já inconscientemente que ele fora ter com o psiquiatra, para lhe pedir ajuda. Dois ou três dias depois, ele foi embora para casa num estado psicológico deplorável! Quanto eu maldisse aquele psiquiatra! Na primeira folga que tive, corri quase 200 quilómetros e fui vê-lo. Não consegui, só falei com a mãe, ele estava a dormir sob o efeito de poderosa medicação psiquiátrica...
  9. Ora bem, os tais muito aguerridos defensores de que todos somos racistas, no fundo, têm uma lista de "descritores" comportamentais do racismo, tal como as bulas psiquiátricas têm das várias doenças mentais. E então, quando somos confrontados com elas, pois é verdade que sim, eh pá, isto aqui, sim, lembro-me que fiz uma vez naquele dia; este outro, tenho de reconhecer, também, é verdade, até me lembro do dia da semana e da hora em que fiz aquilo. Pronto, sou pecador, sou racista; e é melhor não voltar a ler o atestado do meu camarada, não vá ficar convencido com a releitura daqueles descritores todos.
  10. O filme "Don Juan de Marco" mostra muito bem como a linha que separa a saúde e a doença mental é muito ténue, tão ténue que facilmente nos podemos reconhecer num ou noutro lado.
  11. Se é assim tão ténue, o que nos faz sentir, com segurança, no lado de cá da saúde? É a percepção que temos de nós mesmos, é a confiança que temos em nós mesmos, é a força das nossas convicções; e é a consciência de que podemos errar e, depois, assumir o erro, responder por ele e, se necessário, repará-lo.
  12. Por tudo isto, quando me olho ao espelho, cheio de satisfação, oiço-o dizer-me: "Fernando Jorge, tu és pecador, tu não és racista e podes ler o atestado psiquiátrico do teu amigo, à confiança. Mas és pecador, não te esqueças, mas só és mesmo isso." E já não é pouco!
  13. Já agora, lembras-te, Fernando Jorge, quando uma vez foste (foram já tantas!) ao tribunal testemunhar abonatoriamente a favor de um rapaz preto, teu antigo aluno? Lembras-te como saíste de lá vergado ao peso da humilhação que o juiz pôs em cima de ti e quanto essa ferida levou muito tempo a sarar? Só porque disseste que tinhas dado o teu número de telemóvel ao rapaz para ele te ligar caso precisasse de alguma coisa. E lembras-te de que só quando saraste a ferida da humilhação (profundamente injusta, cheia de fel, do juiz) sentiste, mesmo assim, admiração pelo juiz porque, no meio da maldade tão grande que ele te fez, nem uma única vez ele fez referência à cor da pele ou à etnia do teu querido aluno - sendo ele, o juiz, um exemplar típico do tipo humano branco, "caucasiano"?
  • Sobre a fotografia deste escrito: com dois filhos muito pequenos, em Macau, sem apoio da família, a minha mãe teve um problema ortopédico grave, que a obrigou a manter uma das pernas engessada de alto a baixo, durante muito tempo. Do quartel em que o nosso pai, 2.º sargento do Exército, trabalhava veio o Alfredo para ajudar a nossa mãe a cuidar de nós os dois, rapazinhos pequeninos. Um dia os nosso pais saíram e, quando voltaram, a nossa mãe foi encontrar o Alfredo à beira das nossas camas a dar-nos beijinhos.O Alfredo, assim apanhado, desfez-se, muito aflito, em desculpas e jurou por tudo nunca mais voltar a fazer o mesmo. A nossa mãe disse-lhe: "Ó Alfredo, dê os beijinhos que quiser aos meninos, e quando quiser, não tem de fazer isso às escondidas, dê os beijinhos todos que quiser." Não me lembro dos beijinhos do Alfredo, mas guardo dele uma memória terna muito grande que, aqui e ali, me tem ajudado a ser afectuoso, carinhoso e solidário - seja com quem seja. Curiosamente, as chinesas desconfiavam da nossa mãe: nós éramos tão loirinhos que elas pensavam que a nossa mãe nos dava qualquer coisa pouco saudável para sermos assim, elas não achavam possível haver assim crianças tão branquinhas e tão loirinhas.