Manhã
bonita, muito agradável, com tempo para chegar com todo o vagar do Mundo ao Museu Nacional de História Natural, no edifício da velha Escola Politécnica (e depois Faculdade de Ciências), para participar numa conversa
descomprometida sobre simetria, Natureza, seres vivos e cérebro.
Logo
que saí de casa marquei mentalmente o estabelecimento para tomar o café: a
pastelaria que fica mesmo em frente à Faculdade de Ciências, com marcas
bastantes, todas elas simpáticas, da presença do patrono da minha escola – Eça
de Queirós. Gosto daquele interior luminoso e familiar; gosto do aspeto dos
bolos, salgados e outras iguarias no largo balcão, formando um gigante éle;
gosto do atendimento pessoal e gosto da envolvência do estabeleciemento; e
gosto do tempo vagaroso que experiencio sempre que ali vou.
Tive
tempo de, a chegar ao meu destino matinal, numa nesga de rua bem declivosa,
olhar a cúpula e as torres sineiras da Basílica da Estrela bem iluminadas pelo
Sol; eu ia mesmo à procura de cenários ou pormenores bonitos – faltavam 25
minutos para a palestra começar, o vagar era o que desejava… Peguei na máquina
fotográfica, puxei o ‘zoom’ ao máximo… clique! Olhei o resultado. Era melhor
tirar outra, as linhas das verticalidades e das horizontalidades estavam como
eu queria, mas – dúvida metódica - talvez tivesse ficado um pouco tremida; não
se via no écrã da máquina, contudo, não fosse o diabo tecê-las…
Como
gosto de fazer, a certificar-me dos vagares que gosto de saborear, fui até
à imponente e respeitável entrada da Faculdade, antes de ir ao café da manhã. Ó diabo!,
tudo fechado! Mau!... Não me digam que não é aqui!... Eu tinha-me certificado
do local e da hora antes de sair de casa… Será que não recebi algum email de
última hora? Afinal, o correio destas palestras já falhou comigo antes por duas
ou três vezes…
Mudei o
‘chip’, do registo lento-vagaroso para o operativo-dinâmico. Estuguei o passo, e,
voltando para trás, passei para o lado de dentro do portão lateral, procurei
uma porta aberta. Sim, ali estava uma, com o que era preciso encontrar naquele
momento: um senhor porteiro devidamente identificado. Sossegou-me, sim, que não
me preocupasse, estava tudo em ordem, as portas abririam 5 ou 10 minutos antes.
Agradeci, sorrindo com simpatia para o senhor e alívio para mim. E voltei ao
‘chip’ anterior. Ora bem, o que tinha de fazer a seguir? Ah, pois, o café…
Entrei
no estabelecimento Cister e lá estava, à minha espera, a vagarosa e simpática
ambiência que eu queria encontrar. Dirigi-me ao balcão. Do lado de lá, o
empregado, ainda visivelmente senhor de mais anos de juventude do que
adultícia, fez-me um discreto sinal de saudação e de que aguardasse enquanto
fazia o apuro da despesa de um cliente que, à minha esquerda, já tinha posto o
corpo a meio jeito de sair da pastelaria. Chega a minha hora: “Um café, se faz favor.” O meu
interlocutor anui com um aceno de cabeça; sorri e traduz, em voz mais alta do
que quando me cumprimentara: “Sai uma
bica!” Achei piada à assertiva tradução.
Enquanto
aguardava pelo café, perdão!, pela bica, outro empregado, o da sala, tão jovem
e adulto quanto o que eu tinha à minha frente, chegou à zona de serviço do
balcão e faz um pedido em voz alta para dentro do balcão, claramente para
alguém que ele não olhava mas sabia que estaria a ouvi-lo, mesmo que fosse na
zona de trabalho mais afastada daquela em que ele se encontrava.
O tom
de voz do rapaz foi tal que eu reagi ao que ele disse. Captei a tonalidade
firme do pedido que percorreu o ar mesmo à minha frente e tomei consciência de
que só depois me esforcei por dar atenção à mensagem em si; a minha memória
imediata ainda estava disponível e escrevi antes que me esquecesse – e escrevi
porque achei piada ao pedido: “Sai uma
bica em chávena fria pingada com leite frio!” Olhei para as outras pessoas
que estavam do lado de dentro do balcão: um senhor, convincentemente com ar de
patrão, tanto pelos anos de adultícia que aparentava como pela roupa que
vestia; e uma senhora, de faces bem rosadas e bata branca, que não deixava
dúvidas quanto à sua relação com as doçarias expostas em todas as montras, as do
interior do estabeleciemnto e as que estavam nas montras de seduzir a rua. Pois
ninguém parecia, naquele momento, ter ligado ao pedido da razoavelmente
complexa bica.
O empregado de mesa, que entretanto se afastara para junto das mesas, sem esperar que alguém lhe respondesse, voltou à zona de serviço e pediu no mesmo tom de voz firme: “Saem duas bicas escaldadas!”
Respondem-lhe do lado de dentro do balcão: “Bica
fria pingada com leite frio.” Reparei que a devolução deixara cair o “em
chávena”. Vai a bica pingada na mão do rapaz, que volta logo de seguida com
novo pedido: “Sai uma bica curta em
chávena fria”. Do lado de dentro do balcão, a mesma indiferença visual! No
fundo, tudo acontecia no universo das coisas que apenas se ouviam, no universo do rigor das
palavras e dos pedidos dos clientes; e do universo da memória prodigiosa, disciplinada, educada em anos
de atenção bem focada das pessoas do lado de dentro do balcão! Ninguém corria; tudo parecia discreto e lento. Eficácia
absoluta; e tranquila.
Eu
saboreava a bica, mais lentamente do que é meu hábito, lembrando-me que, na escola, costumo
pedir, quando há tempo para brincar, com a fórmula “Café quente em chávena morna a fugir
para o frio”. Até deu tempo para olhar para trás, um barulho vindo da
entrada despertara a minha atenção: era um casal que entrava com uma criança
bem pequena e eu não percebi se o que ouvi da criança era um protesto ou um
esgar de contentamento. Era contentamento. Sentaram-se na mesa mais ao pé de
mim, logo ali atrás. Mais do que o café, eu saboreava aquele espetáculo todo à
minha volta.
Pouco depois, dei-me conta de que
um silêncio prolongado se instalara nas trocas entre o lado de fora e o lado de dentro do balcão. Só se ouvia, qual folhagem pouco densa agitada pela brisa, os murmúrios cruzados das pessoas sentadas nas mesas. O rapaz da sala encostara-se ao balcão
de serviço e agora dobrava um papel de tabuleiro. Parecia estar a fazer um
avião… Um avião!?... Ali?... Não, não podia ser… Eu, quando era pequeno, era
assim que fazia os aviões de papel… Ali, com o patrão ali perto?... Talvez
estivesse a improvisar uma caixa para um cliente levar algum bolo ou alguma
metade de sandes… Ah, pois, devia ser isso!... Deixei-me ficar a ver, não fiz
nada para apressar que me recebessem o dinheiro da bica. Olha!... Era mesmo um
avião de papel!
Eu
continuava a sentir a estranheza daquele tempo de silêncio, acentuado por
aquele avião que crescia nas mãos do jovem adulto de voz firme e clara. “Rúben, estás bem?”, oiço eu então,
palavras pronunciadas pela senhora “culpada” da doçaria, bem do meu lado
direito. O empregado de mesa, sem deixar de continuar o seu avião, denunciou
ser ele o Rúben: “Estou muito caladinho,
não é?...” A seguir riu-se. A senhora pasteleira riu-se também e confirmou
que estranhava estar ali sem fazer nada que ele mandasse…
Sim, sim. Afinal ele queria
alguma coisa dela: queria fita-cola para colar as asas do avião que acabou
naquela altura de fazer. Mesmo não sendo assunto da área em quer reinava, a
senhora arranjou ao rapaz das mesas o que ele queria. Ao mesmo tempo que eu me
voltava para me ir embora, o improvisado mecânico de aviões entregava a sua
construção ao miúdo que me tinha obrigado a voltar para trás e vê-lo entrar com
os pais. Percebi que eram, o miúdo e os seus pais, clientes habituais. Serei mais rigoroso se disser que o improvisado homem dos aviões – que sorte a oportunidade aberta pela
acalmia dos pedidos dos clientes! – terminou o avião, não o deu para as mãos do miúdo, mas fez o avião voar à frente do miúdo. Foi buscá-lo onde ele caiu, desta vez, sim, deu-o ao
miúdo e apontou-lhe uma parede. O miúdo olhou para o grande – grande na
perspetiva dele, pequenito – homem que lhe sorria e desafiava. O homem grande
insistiu em desafiá-lo, apontando a parede: “Vá,
atira para ali!” O miúdo pôs o avião em posição de lançamento, bem seguro
na pequenita mão direita. Olhou ainda mais uma vez o fabricante do avião.
Reparei que hesitava. Hesitava e fez vencer a sua vontade: apontou o avião à
porta e lançou-o.
Eu ri-me, cheguei-me ao
rapaz-quase-adulto e quase-tão-criança como aquela a quem ele se dirigia
naquele instante, pus-lhe por trás a mão do ombro, e aproximei tanto quanto pude a boca
ao seu ouvido. Seguramente que ele percebia o meu hálito a café. Percebeu
também que eu me ria: “Ó homem, então
você dá ao miúdo um avião assim desse tamanho e quer que o miúdo o ponha a voar
aqui entre paredes… É claro que um avião desses é para subir bem alto no ar, o
miúdo só podia lançá-lo porta fora! Não lhe apetece a si ir lá para fora e
fazer o que o puto fez?...” Só nessa altura nos olhámos olhos nos olhos. “Tem toda a razão…” disse-me ele a
rir-se, “tem mesmo toda a razão…”
Dei-lhe duas palmadas cordiais no ombro, pisquei-lhe o olho e disse-lhe: “É bom a fazer aviões. Continue! Os miúdos
gostam. Até um dia destes!” Ele agradeceu-me e eu saí.
Dois ou três minutos depois abriam
finalmente as velhas – e as novas, de vidro – portas da Faculdade de Ciências.
Mas o meu dia na Pastelaria
Cister ainda não tinha chegado ao fim, ainda havia vagar no tempo para mais uma
coisa: cá fora, um dos toldos dizia “Confeitaria”; outro dizia “Pastelaria”; ao
centro, entre estes dois, o terceiro dizia “Fundado em 1838”. Entrei outra vez,
a senhora dos bolos percebeu que eu queria alguma coisa; e perguntou-me o que
precisava eu. Respondi-lhe que queria só fazer uma pergunta, não queria tomar
mais nada; e, se calhar, nem era a ela que eu devia fazer a pergunta, talvez
fosse melhor ao patrão. Ela disse-me, apontando ao que certeiramente presumira
ser o patrão:
“O patrão é aquele senhor,
mas se o senhor quiser perguntar-me, eu talvez saiba responder-lhe. O que é que
o senhor quer saber?...” Agradeci à senhora, e fiz questão de respeitá-la
na sua disponibilidade, mesmo que estivesse praticamente seguro de que a
senhora não me iria responder
: “A
pergunta é esta: lá fora diz que este estabelecimento é uma pastelaria e uma
confeitaria, mas não diz «fundada» mas «fundado»…” A senhora interrompeu-me
e disse-me:
“Ah, pois, esse assunto terá
de ser mesmo com aquele senhor, o patrão….” Agradeci-lhe, mesmo assim, tão
simpaticamente quanto pude e repeti a pergunta ao senhor, que me deu logo
atenção. Ele reagiu com alguma atrapalhação. Para lhe facilitar a interpelação,
perguntei-lhe se tinha a ver com «estabelecimento» e não com «pastelaria» e
«confeitaria». O senhor respondeu-me:
“Olhe,
não sei… nunca tinha pensado nisso…” Voltou-se para trás, pegou num cartão
da casa e deu-me, convidando-me a ver o cartão com atenção. Agradeci-lho, mesmo
percebendo que o senhor me estava delicadamente a despachar. Mas, pronto, quem
sabe?, um dia destes vai voltar a pensar sobre uma coisa eu até hoje nunca
tinha pensado.
Muito bem, cheguei ao limite do
meu vagar. Eram mesmo horas de me chegar à Sala Azul do Museu da Faculdade de
Ciências, onde o atraso do Professor Maquiavel me deu tempo de tirar
fotografias à baleia-comum pendurada do teto numa sala linda do Museu, bem ali
ao pé do improvisado Café da palestra que era, desde o início, o motivo de ter
ido hoje para aquela zona da cidade de Lisboa.