“(…) Einstein, aconselhado pelo
diretor [do Instituto Politécnico de Zürich], resolveu dedicar um ano a
preparar-se na escola cantonal da vila de Aarau, a quarenta quilómetros para
oeste [de Zürich]. Era a escola perfeita para Einstein. [Einstein tinha, nesta
altura, 16 anos de idade] O ensino inspirava-se na filosofia do reformador da
educação do início do século XIX, o suíço Johann Heirich Pestalozzi , que
pretendia estimular os estudantes à visualização de imagens[1].
Também considerava importante cultivar a ‘dignidade interior’ e a
individualidade de cada criança. Pestalozzi defendia que os estudantes deviam
chegar às suas próprias conclusões seguindo uma série de etapas que começavam
com o contacto direto com o objeto e que depois prosseguiam até intuições,
pensamento conceitual e imaginação visual. (…) A compreensão visual dos
conceitos, como era defendida por Pestalozzi e os seus seguidores em Aarau,
tornou-se um aspeto significativo da genialidade de Einstein. ‘A compreensão
visual é essencial, a única forma verdadeira de ensinar e avaliar as coisas
corretamente, escreveu Pestalozzi, e ‘a aprendizagem dos números e da linguagem
deve indubitavelmente subordinar-se a ela’. Não surpreende que, naquela escola,
Einstein se tenha, pela primeira vez dedicado às experiências mentais que o
ajudariam a converter-se no maior génio científico do seu tempo: tentou
visualizar como seria viajar ao lado de um raio de luz. (…) Com o passar dos anos,
ele visualizaria mentalmente eventos como relâmpagos e comboios em movimento,
elevadores a acelerar e pintores em queda (…)”.
Também o meu querido mano Acúrcio Domingos
mais do que uma vez, na sua meninice, se deixou levar, no seu pensamento
imaginativo, crédulo e ávido, por façanhas de corpos em movimento.
Agora que falou de uma dessas
saborosas memória às minhas alunas de Psicologia, num trabalho monográfico que
ele próprio acarinhou com muito empenho e satisfação, sinto que posso trazer a
público uma dessas curiosas ‘experiências mentais’ do menino Acúrcio Domingos.
O meu mano tinha um tio fascinante, o seu tio António, irmão de sua mãe; na
altura, o sobrinho era uma criança que via o tio como um homem do futuro, “com
as suas ideias alucinadas”… O tio António convenceu-o que tinha um burro com
mudanças, que usava para o fazer andar mais depressa ou mais devagar, carregado
ou mais leve, em subidas e descidas; e, no meio de outros relatos fantasiosos, deixou-o
preso na imagem de um dia ter dado um chuto numa bola com tal força que a boa
se elevou bem no ar, deu voltas e voltas e foi cair na Covilhã. O menino
Acúrcio, que vivia numa austera aldeia serrana, e nunca tinha ido à Covilhã,
viu o seu pensamento ficar escravo daquela façanha humana extraordinária e
muitas vezes se deixou ficar absorto na imaginação da viagem daquela bola que,
na descrição do seu hipnotizante tio, tanto tinha subido no ar e pulado por
cima de montes e vales até voltar ao chão na desconhecida cidade. Três dias,
garantia-lhe o tio, andou a bola no ar, a voar, até que caiu na Covilhã!...
Einstein seguiu, na sua
imaginação, a viagem de um raio de luz, vindo de cima para baixo; o Acúrcio
seguiu a viagem de uma bola, ida de baixo para cima.
A partir da mesma matriz imaginativa
infantil – notável matriz! – Einstein e Acúrcio seguiram caminhos diferentes.
Einstein, se fosse colocado, como o Acúrcio o foi, perante a ocorrência
incrível da bola em movimento no ar durante três dias, ter-se-ia dedicado a
fazer todos os cálculos de Física indispensáveis para determinar a força
inicial que seria necessária para imprimir o movimento à bola, tentaria
descrever a trajetória do corpo em deslocação no ar, sujeito às condições habituais
da gravidade, a resistência oferecida pela superfície de propagação, etc.,
etc., etc. E seguramente chegaria ao valor – brutal! -, nas unidades de medida convenientes,
que o pontapé do tio António teria aplicado na bola para que parasse apenas ao
fim dos 3 dias…
O meu mano Acúrcio seguiu a outra dimensão do
caminho de Pestalozzi. Deixou os cálculos da Física para Einstein (ou, premonitoriamente,
para o filho Gonçalo?... que agora se dedica às contas de Einstein) e entregou-se,
de corpo e alma, a, como dizia Pestalozzi, “cultivar a ‘dignidade interior’ e a
individualidade de cada criança”, de cada aluno; de cada um, seja ele qual for,
que entra, circunstancialmente, ou mais demoradamente, no círculo dos seus
contactos pessoais.
Ontem, véspera de Santo António,
no meio da turbulência que foi o dia de trabalho na escola, com reuniões que se
faziam ou não se faziam, com horas e salas que se trocavam, tive tempo e paz
oportuna para receber uma antiga aluna de Psicologia, de quem muito gosto e que
sempre me tratou com muito carinho.
Veio falar-me de uma angústia que
sente com o seu filho mais velho. Deixou-me com angústia semelhante. Na
verdade, o filho, que tem mostrado um desenvolvimento pessoal tumultuoso, chega
ao segundo ano de escolaridade e é confrontado, tal como os seus colegas, ao
contacto com 7 professoras diferentes desde o princípio do ano!... Sete,
imagine-se!... Sete, em dois anos já é demais, então, num ano só é o falhanço
total da estabilidade nos processos de aprendizagem, de identificação afetiva
ao mestre que ensina, é… é terrível!... Disse à aflita mãe que o que agora
chamam “hiperatividade”, no tempo do meu mestre João dos Santos, era designado
por “instabilidade”. E ele dizia de forma simples que nos ajudava a sentir a
essência da dinâmica psicológica interior da criança, que “a instabilidade é a
procura da estabilidade”, tal como nós que, quando começamos a ansiar a
resolução de alguma coisa, nos envolvemos em procedimentos cada vez mais
apressados para resolver o que nos aflige.
O filho da minha querida aluna
tem dado mostras de desenvolvimento cognitivo precoce, com aquisições escolares
autónomas e antes das idades habituais. A mãe dele, nos seus relatos,
mostrou-me uma série de danos que poderão ser mais ou menos gravosos se não
forem atalhados a tempo. Um deles, que não é dos menores, é a capacidade que a
criança tem de cálculo mental, por processos idiossincraticamente muito
imaginativos. Disse-me a mãe que o filho agora desistiu deles. A mais recente
das suas “multiprofessoras” disse-lhe que as contas se fazem mas é com uma
régua!... A trazer-me à consciência, a saber a fel, a ironia da afirmação que o
pai lavrador terá feito, no leito da morte iminente, ao filho: “E não te esqueças, meu filho, que até das
uvas se faz vinho…”
Como pode esta criança, com as
condições de aprendizagem que a sociedade organizada lhe dá, sonhar
saborosamente com bolas que dão voltas no ar e caem 3 dias depois na Covilhã,
ou sonhar em voar ao lado de raios de luz?...
[1] Estais
vendo, queridos alunos, o que tantas vezes vos falei?... Isto é intuição sábia,
muitas dezenas de anos antes que os modernos estudos do cérebro mostrem “cientificamente”
esta evidência; no fundo, como António Damásio também nos procurou mostrar com
o que escreveu sobre Espinoza.
(fonte da imagem: http://www.pestalozzirj.org/ imagens/pestalozzi.jpg)
(fonte documental: Isaacson, W., 2008. Einstein, a sua vida e universo. Casa das Letras. Pág. 40-41)
(fonte documental: Isaacson, W., 2008. Einstein, a sua vida e universo. Casa das Letras. Pág. 40-41)