(...) já lidei muitas vezes com casos de pânico e de desespero, uma pessoa sentir que está em risco e vê-se pelo olhar que, quando nós chegamos, agarram-nos (quando ainda conseguem) como se nós fossemos "a vida", mas o mais gratificante é ver a alegria nos olhos de uma pessoa por ter sido salva!, por um familiar já estar bem! Por muitas coisas!... E aí olham-nos como se fossemos deuses, muitas das vezes fazem de tudo para não perder o contacto com quem as salvou!, porque lhe vai ficar grata o resto da vida e é muito bom sentir isso... muito bom mesmo! (...)
Na abertura do curso de Psicologia da turma do 12.º ano, deste ano letivo, lancei o convite aos alunos para que se apresentassem aos colegas, por escrito, num fórum existente para o efeito na plataforma informática da Escola. Escreveriam a partir da ideia que têm da sua relação com a Psicologia, a partir da ideia que têm sobre a maneira como, na opinião de cada um, a Psicologia esteve já presente nas suas vidas.
Um dos alunos que aceitou prontamente responder ao convite foi o Tiago. O Tiago é o aluno mais alto e mais velho da turma. Acabou de fazer 20 anos. No contacto social, é um rapaz discreto, sóbrio na expressão pessoal e nas palavras. Muito bem-educado. Facilmente desperta simpatia. Foi igual a si próprio no primeiro texto que escreveu em resposta ao meu pedido: discreto, sóbrio, simples; apoucando-se, mesmo: fala da sua formação e acaba o texto dizendo “A meu ver, acho que não há mais nada de relevante a escrever!”
O Tiago é bombeiro desde os 12 anos. Tem apagado muitos fogos, mas não consegue apagar o fogo que arde dentro dele. (Um dia lhe explicarei que o fogo que tem dentro dele é fogo do tipo que cria a vida, ao contrário daquele contra o qual luta em todo o lado, sempre que o chamam). Talvez pela experiência que tenho de contacto com os vulcões dos Açores, percebi que a dimensão do fogo que se convulsiona dentro do meu bem recente aluno é a mesma que faz a intensidade poderosa dos magmas que respiram teluricamente nas fascinantes ilhas atlânticas e atlântidas.
Confiante na minha ideia, passei do convite ao desafio. O Tiago não baixou os olhos, não deu passo nenhum atrás e decidiu enfrentar o desafio com a mesma coragem e frontalidade com que tem enfrentado tanto fogo, tanta tragédia, nos seus poucos, mas tão intensos, anos.
Com todos, agora e aqui, partilho, com a sua autorização, as suas sinceras palavras:
Posso responder, sim (…), embora não tenha escrito antes pois também não quero ser aborrecido e assim tipo chato...!
Sim, já lidei muitas das vezes com todas essas emoções humanas nos outros, e tenho de dar sempre a volta, é essa a minha função e já lidei com a tristeza de perder um familiar, [com] a raiva que têm muitas vezes por mim, porque o trabalho que fiz não deu frutos positivos, no caso da saúde.
Também já lidei muitas vezes com casos de pânico e de desespero, uma pessoa sentir que está em risco e vê-se pelo olhar que, quando nós chegamos, agarram-nos (quando ainda conseguem) como se nós fossemos "a vida", mas o mais gratificante é ver a alegria nos olhos de uma pessoa por ter sido salva!, por um familiar já estar bem! Por muitas coisas!... E aí olham-nos como se fossemos deuses, muitas das vezes fazem de tudo para não perder o contacto com quem as salvou!, porque lhe vai ficar grata o resto da vida e é muito bom sentir isso... muito bom mesmo! O lado mau é quando vamos para socorrer e muitas das vezes somos mal recebidos, muitas das vezes chega a haver agressões verbais e físicas, mas nem assim se perde a vontade de ajudar!!
Pergunta-me se eu nunca senti medo, ou vi o medo nos rostos dos outros bombeiros e das pessoas com dramas de doenças, incêndios, desastres, etc.
Toda a gente sente medo e por ser bombeiro não sou diferente, posso não mostrar que tenho medo mas sim, já senti esse medo, eu e muitos colegas. Ainda esta época de fogos, enquanto estive no Parque Nacional da Peneda Gerês, eu e todos os meus colegas passámos muitos momentos em que tivemos medo, mesmo assim nunca o mostrámos, tanto que muitas das vezes tiveram de ser superiores a ir-nos buscar para fugir mesmo à última da hora porque já estávamos em risco, e estávamos a ficar cercados pelo fogo, uma das vezes, inclusive, tivemos de ficar em cima de um pedregulho durante uma hora e meia à espera que o fogo se afastasse para podermos sair dali, mas isso é o que incentiva os bombeiros, é o risco...
"Nunca sentiste vontade de chorar, ou cansaço?"
Sim, já senti vontade de chorar, tanto por alegria, como por tristeza e pânico! Por pânico, quando ia socorrer uma bebé de 3 dias que tinha deixado de respirar e encontrava-se inconsciente, e pânico esse porque uma criança de 3 dias é um Ser muito pequeno e imprevisível, não se pode fazer muita coisa como bombeiro, para socorrer um criança desse tamanho, por motivos de não termos equipamento para esse socorro nem formação para tal! Mas mesmo assim optei por fazer o pouco que sabia como cultura geral e correu bem, a menina reanimou e começou a respirar normalmente e ainda hoje a vejo, já com um ano, e é uma criança saudável e feliz e é cada vez que a vejo que me sinto feliz...
Já chorei de tristeza, por exemplo, quando se perde um colega e amigo, pois não é fácil aceitar, como está a acontecer presentemente nos Bombeiros da Pontinha...!
Cansaço!? Muito! Mas bastam 30 minutos de sono para trabalhar mais 24 horas sem parar, como aconteceu comigo no Gerês, onde almoçava às 7 da tarde rações de combate e jantava às 5 da manhã a mesma coisa, assim sucessivamente durante 4 dias e só dormia quando o fogo estava em locais de acesso impossível, e também devo frisar que fomos 60 bombeiros de Lisboa numa viagem que demorou 5 horas e ainda fomos para lá apaga fogos com quilómetros de extensão. Só com pás, e andávamos a pé... sem carros!
"Nunca alguma coisa da tua experiência de bombeiro te deixou a pensar mais do que uma vez?"
Sim! Muitas vezes ... muitas vezes pensamos o que andamos nós a fazer a arriscar a vida sem receber "nada" em troca! Não compensa muitas vezes deixar a família toda em casa e sair a correr como já aconteceu comigo muitas vezes. Ainda recentemente, no meu dia de aniversário tinha um jantar combinado com a família, a namorada e os amigos e perto da hora de jantar tive de ir para um incêndio florestal fora de zona (Carregueira), onde passei lá a noite!! É por isso que penso muitas vezes, mas quando chega a altura de ir não penso 2 vezes!
"Nunca sentiste raiva por quereres ajudar e não conseguires?"
Por conseguir não, porque tenho de arranjar sempre maneira de conseguir, mas pode-se dizer que já senti por não conseguir como eu pensei e ter de arranjar outra maneira que na altura nem eu imagino bem como, logo se vê! Acontece constantemente a nível geral mas temos sempre de manter a calma para quem está ao nosso redor não o sinta, e deixar acontecer e agir!
"Nunca sentiste que fracassaste?..."
Sim... na maioria das vezes sem culpa, principalmente quando se perde uma vida, e nós damos tudo por tudo para reverter isso ou para evitar isso, e não vemos frutos positivos e quando ouvimos os familiares próximos a lamentar-se pelo sucedido, muitas vezes com revolta, sim, sinto que fracassei e só me resta sair de cabeça baixa, embora saiba que fiz tudo o que podia e que aquilo tinha de acontecer e não havia volta a dar...!
Caro Tiago, depois de tudo o que dizes, assim de maneira tão pessoal, tão franca, eu devia calar-me, as tuas palavras mereceriam todo esse respeito. Sim, vou calar-me mas ainda tenho de te dizer que mereces que, aula após aula, eu dê o meu melhor, sempre mais e sempre melhor e, mesmo assim, será sempre pouco para agradecer e retribuir o tanto que todos nós já devemos aos teus ainda tão jovens anos. E devemos também aos teus camaradas bombeiros.
Pronto, calo-me. Porque isso me compete. As tuas palavras são a música de que fala o profeta.
Abraço-te até aos ossos, muito afetuosamente.