- Vou agora à Praia do Norte, vou lá comprar uma massa sovada.
- Posso ir contigo?, tio, perguntou-me a Mariana.
Para a minha sobrinha, na ilha do Faial, nos Açores, ir da Horta à Praia do Norte é como ir da cidade para o campo, numa perspectiva que nunca antes eu tivera da ilha, não obstante as minhas tantas visitas lá, de há quase vinte anos para cá.
Fomos da Horta ao Capelo, pelo lado sul da ilha. Na Feteira perguntou-me se depois voltávamos pelo outro lado. Percebi que lhe apetecia dar a volta à ilha, ia muito pensativa sobre a geografia da ilha e sobre a vida que se leva fora da sua cidade.
Acabou por reconhecer que há muito tempo não se deslocava para aquela zona, que não saía para fora da cidade; e reconheceu que entrava num mundo outro, diferente do dela, um mundo que muitos dos seus colegas de escola falavam e que ela desconhecia e, se calhar pela convivência com eles, agora queria entender melhor.
Fez-me lembrar os meus tempos de escola, e os meus colegas dessa altura, que vinham das aldeias ali à volta de Abrantes, e chegavam a andar sete e mais quilómetros a pé todos os dias para virem para as aulas.
- Ó tio, agora é que eu estou a ver bem o que é eles irem todos os dias para a escola assim de tão longe!... Mesmo que vão de transportes é muito tempo.
Lembrei-me do Luís, que no ano passado connosco subiu o Pico, que, em São Jorge, para uma distância de cerca de 20 quilómetros, faz, todos os dias, mais de uma hora para cá e outro tanto para lá na carreira, entre a sua casa e a sua escola. E lembrei-
-me dos meus velhos – que saudades me sobrevêm, meu Deus!... – colegas, que saíam de casa, a caminho da escola, pelo menos hora e meia antes de eu sair da minha… todos, todos os dias, enquanto as aulas duravam.
E pus-me a pensar se a vontade que ela tem mostrado nestes dias de ir a pé para a escola teria alguma coisa a ver com isto tudo ou não. Ir a pé para a escola é bom, se o fizer com colegas, ainda melhor.
Nas suas ruminações geográficas, procurando tirar o melhor partido desta viagem para esclarecer coisas que aos poucos lhe povoaram a cabeça de interrogações e reflexões mais ou menos indefinidas e sedentas de esclarecimento, pediu-me que a ajudasse a localizar a Feteira de Cima e a Feteira de Baixo. A Dalila, a empregada lá de casa, falava-lhe da de Cima e tinha colegas que lhe falavam da de Baixo.
Foi nesta altura que eu claramente tomei consciência do meu papel, e que percebi que aquela conversa da Mariana era mesmo importante para ela. Na verdade, foi nesta altura que eu percebi que talvez não estivesse à altura do papel que ela me atribuía: a do tio que sabia porque era mais velho e porque era tio; que conhecera o Faial ainda antes dela mesmo; o tio que um dia foi o sábio que falou ao irmão, o João, sobre o mar dos Açores.
Afinal, aquela ilha, mesmo que muito pequenina na minha representação mental, não era para a minha sobrinha açoriana aquilo que eu pensava que era; nem era para mim aquilo que a Mariana pensava que fosse… Por exemplo, não me passava sequer pela cabeça que houvesse ali uma Feteira de Cima e outra de Baixo!...
E consciencializei que estava perante uma situação engraçada, desafiadora, em que um desconhecimento se dispunha alia à minha frente, pronto para ser conhecido se ao encontro dele avançasse. E assim decidi fazer.
Onde me faltava experiência sensorial, física, de passos calcorreados por aqueles lugares, a trazer para dentro da pele a realidade daqueles lugares e daquelas pessoas, tornando-os parte de mim; dizia eu, onde me faltavam essas coisas, pus eu o poder da análise dos meus esquemas mentais, adquiridos noutros lugares e com outras pessoas, ao longo de muitos anos.
O que resultou em cheio!... Acabámos por concordar, na volta a casa, com as massas sovadas descansando no banco de trás do carro, que a estrada dividiria a povoação para cima e para baixo e a Mariana, apontando agora já com esclarecimento e segurança com a ponta do dedo, localizou a Feteira de Cima e a de Baixo, a da Dalila e a dos colegas de escola.
Esta pequena viagem era mesmo uma necessidade para a menina da cidade. A incursão nos territórios de vida dos colegas e da experiência social de muitos deles trouxe-lhe à mente e aos sentimentos um novelo bem enrodilhado de interrogações e fantasias.
A Mariana ouvia-os lá na escola e hipnotizava-se com o que diziam. Tentava chegar a pôr-se na pele deles para entender – sentir mesmo! – o que eles diziam mas era muito difícil.
- Tio, eles falam dos vizinhos deles… Eu já pensei por mim, eu não sei o que são vizinhos, eu não sei os nomes de quem mora ao pé de mim, nem sei quem são… e acho que era engraçado ter vizinhos…
Na verdade, a minha sobrinha mostrava uma vaga tristeza por não poder fruir a experiência social e afectiva que ela adivinhava nas conversas, nos risos e nos entusiasmos dos seus colegas do campo. Eles falam de tanta coisa, conhecem os nomes das pessoas que moram ao pé deles, vão para o café ou para a associação e conhecem os nomes dos velhotes que lá estão e falam com eles todos. “E eu não conheço ninguém… não posso falar de ninguém…”
Eles têm de tratar dos animais e das coisas lá do campo, falam do que plantam e do que apanham. “E ainda têm que estudar…”
Não sei se na cabeça da minha sobrinha a vida dos seus colegas tinha tomado proporções hercúleas: iam de longe para a escola, o que lhes tomava, todos os dias, muito tempo; tinham de tratar das coisas dos animais e das tarefas agrícolas dos seus pequenos pedaços de terreno; juntavam-se aos vizinhos e falavam com eles; e tinham ainda de estudar as coisas da escola. E nem ao domingo os animais e outros trabalhos davam descanso!... E ela não sabia fazer nada, nem com o leite das vacas, nem com couves que se apanham…
Não sei se ela chegaria a invejar os seus colegas por isso, mas seguramente que ela se deixava fascinar pela “sabedoria” e pelo prazer com que os ouvia a falar uns com os outros, solidários numa experiência de vida, que lhes alimentava o desenvolvimento pessoal com um húmus que a Mariana não tem dúvidas nenhumas que é muito importante na formação das pessoas.
Lembrei-me do extraordinário documentário sobre Konrad Lorenz, em que ele diz, a certa altura, “Onde as rãs sobrevivem, as crianças medram”.
Tenho dito repetidamente que me reconheço como psicólogo praticamente desde os meus dez anos de idade. E a Mariana agora estava a ser também sabiamente empática dos outros e da importância das experiências sociais precoces no desenvolvimento das pessoas. Penso mesmo que se lhe desse uma ou outra dica para isso, ela consciencializaria em palavras certas e ajustadas o paradoxo que é, provavelmente, viver na rua principal em comércio e serviços da cidade da Horta, com a densidade populacional no máximo, e isso nada lhe valer do ponto de vista das relações de vizinhança. Pelo contrário, precisamente ao contrário dos seus amigos de escolas provenientes de regiões com muito menos habitantes por unidade de espaço geográfico.
A minha sobrinha é seguramente uma “campeã” de telemóveis, usa-os, estraga-os, descontenta-se com eles quase à velocidade da luz. Tem já na Internet uma experiência de redes sociais no Hi5 e no Messenger de grande dimensão, que domina com elevada perícia. Tantos contactos!... tantas mensagens!... tantas fotografias!...
Tanta comunicação… virtual… mas nenhuma destas coisas lhe traz a experiência, pela voz, no olhar, no toque, no cheiro, nos jogos, nas brincadeiras, nas tarefas, nas conversas, da presença dos vizinhos. Que tipo de húmus é este, o das crescentes e consolidadas urbanizações?...
Horta, 24 de Janeiro de 2010.